Anthony Miles


O antropólogo gestor

Um dos seus lemas foi o de respeitar sempre as pessoas e os valores humanos e agir com ética, civismo e correpção com os seus colaboradores e todos os outros intervenientes no negócio. Orgulha-se de ter conseguido grandes amizades dentro da empresa, onde procurou sempre valorizar o trabalho de cada pessoa. Faleceu a 25 de dezembro de 2019.

por: Paulo Camacho


Nasce na Madeira em 1937 mas é um cidadão inglês por opção. Afável por natureza, é muito cortês. Trata-se de Anthony Miles, com quem jantámos para conhecer o seu trajecto.
É o homem que leva a Empresa de Cervejas da Madeira à posição dominante do mercado local.

Anthony Miles é filho único. Vive uma infância normal. Apesar de inglês, não conhece outra ilha que não a Madeira neste período. Os tempos são difíceis. Sair não é tarefa fácil até que a segunda guerra mundial termine. O pai é vice-cônsul britânico no Funchal.
Estuda numa escola privada, no Bom Jesus, com pouco mais de meia dúzia de amigos.
A primeira vez que tem oportunidade de sair da Madeira é só em 1945, quando termina a grande guerra. Tem 7 anos. Vai a Lisboa com os pais. Lá ficam dois a três meses, com amigos. Os pais vão a Espanha. Anthony fica em Vila Nova de Mil Fontes.
Em 1946 volta ao continente com os mesmos amigos.

Estudo em Londres
No ano seguinte, em Abril de 1947, os pais decidem que Anthony deve ir para Inglaterra. A intenção é colocá-lo num colégio interno privado de jesuítas, que impunham grande disciplina. Queriam a melhor educação para o filho.
Anthony Miles tem um grande choque. Nunca tinha ido à Grã-Bretanha nem sequer conhecia os familiares ingleses. Ainda existem vestígios do conflito bélico. Há racionamento de comidas e de roupas. Periodicamente recebe em Londres cestos com bananas e manteiga em conserva que se fazia na Madeira. Na escola os seus colegas ficam espantados com aquele fruto que nunca tinham visto.
É a primeira vez que anda de avião. Vai de barco até Lisboa. Depois segue num Super Constelation da Pan Am para Londres, via Paris.
Os primeiros dois anos de aulas são de grande sofrimento. Há uma grande disciplina. Aquela ilha, balizada pelas paredes do colégio, ainda é mais pequena do que aquela que o viu nascer. As saudades acumulam-se. Não se cansa de escrever aos pais e aos avós. Quer que o livrem do isolamento. A saída do colégio é o objectivo.

O tempo passa. Habitua-se às adversidades. Consegue adaptar-se. Passa nove anos com os jesuítas de onde sai somente em 1955. Curiosamente, com tristeza. Faz muitos amigos.
Quando sai tem o estatuto de chefe dos alunos numa importante hierarquia da escola, onde também é capitão da equipa de râguebi, o seu desporto de eleição.
Também chora.
Transporta consigo uma riqueza interior. Ensinam-lhe que uma das principais missões de cada pessoa é contribuir e ajudar de qualquer forma. Outra é que para superar as adversidades é necessário ter muita fé.
Esta etapa está completa.

Livre em Paris
A próxima jornada leva-o a atravessar o Canal da Mancha. Rumo a França. Segue para a cidade luz: Paris, para a Universidade de Sorbonne onde faz um curso de Civilização Francesa. Um curso direcionado mais para estrangeiros, para conhecer a língua e a cultura do país. Tudo porque quer entrar na universidade em Londres num curso de letras.
Ao contrário do rígido colégio dos jesuítas, está numa universidade aberta e vive em casa de uma família amiga com quem tem de jantar todas as noites.
Num país com igual tradição no râguebi ingressa na equipa do Rancing Club de França. Entra no escalão dos juniores. É o único estrangeiro na equipa. Encontra uma oportunidade de viajar pelo país nos jogos da liga francesa. Chega a uma final de juniores. Uma final que o adversário vence.
No ano seguinte, em 1956, regressa a Inglaterra. Faz exames e ingressa num colégio em Cambrige. A ideia é fazer um curso de letras com as línguas de francês, espanhol e português.
Em Cambrige, encontra Jimmy Welsh, um jovem que vive na Madeira, onde também tem laços familiares, que viria a ser empresário, nas que, entretanto já faleceu. Está a fazer o curso de arquitectura. Vão a um restaurante. Jimmy apresenta-lhe Veiga Simão que, mais tarde, seria ministro em Portugal. Ali está a fazer um doutoramento.

A mudança
Nisto um ano passa. O curso não corresponde às expetativas e começa a estar a mais nos seus horizontes estudantis.
Mas a sorte está do seu lado. Um colega tem entre os professores um de antropologia. Tem oportunidade de o conhecer. Fica cativado pela ciência que estuda o homem nos seus diversos aspectos, o que constitui o grupo das ciências humanas: etnologia, história, sociologia, psicologia social e psicologia geral. 
Passa dois anos a tirar o curso que, em condições normais, demoraria três. Considera terem sido os anos mais formativos da sua via estudantil. Sobretudo, ajuda-o a compreender as pessoas.

A nacionalidade
Aos 21 anos opta pela nacionalidade inglesa. O facto de estar a fazer os estudos em Inglaterra e não estar interessado em ir para a guerra nas então colónias portuguesas têm grande influência. Em Inglaterra faz a inspeção. Mas escapa ao serviço militar por ter sido abrangido pelo corte nas admissões que as autoridades implementam.
A Madeira começa a ser cada vez mais apenas a terra onde nasce. O regresso não está nos seus planos depois de conhecer o cosmopolitismo de outras civilizações vanguardistas.
Por essa altura, alimenta a ideia de ir aos Estados Unidos da América tirar um curso de gestão.
Mas nem sempre os rumos traçados mantêm o barco na direção do destino. Determinadas condições motivam alterações. É isto mesmo que acontece a Anthony Miles. 
Dão-se dois acontecimentos em Inglaterra que mudam o rumo à sua vida. Encontra a rapariga que foi a sua mulher, que vive em Londres. Conhece-a por intermédio de uma amiga comum da Madeira. Que também reside na capital do reino.

O desafio
Outra condição que altera a sua vida tem a ver com o facto de os familiares na Madeira o convidarem a passar uns dias na ilha para o sensibilizar a trabalhar na empresa de família.
Não tem a noção do que é trabalhar numa fábrica. Mas aceita o desafio.
Contudo, aprende primeiro a arte de bem fabricar.
Através do padrinho, que vive em Londres e que tem grandes contactos empresariais, consegue trabalhar numa fábrica de cervejas na cidade: a Courage and Barclay. Os primeiros passos dão-se num departamento, em Kingstown, onde a empresa tem um centro de engarrafamento.
Conhece o processo de enchimento e as adegas. Fica quatro meses até ser transferido para a fábrica, em Londres, onde trabalha na secção de fabrico. Aprende de perto com o director de fábrica. Por lá fica cerca de um ano. Mais uma fase e completa a aprendizagem. 

Está pronto para regressar à Madeira. O que acontece.
Mas, algum tempo depois, a 10 de Junho de 1961 volta às grandes ilhas para casar na igreja francesa de Londres. O seu padrinho é o madeirense Miguel João Jardim, que está na Casa de Portugal. Com a lua-de-mel completa volta para a Madeira, dois meses depois. Espera-o uma nova vida.
Na empresa, Anthony Miles faz um pouco de tudo durante quatro anos. Fica sem cargo específico.

O parceiro
Em 1965 é decidido ter um parceiro estratégico com mais conhecimento. A escolha recai na empresa Central de Cervejas. A ideia é apostar forte na produção de cerveja. Nasce a marca Coral. A gestão da Empresa de Cervejas da Madeira passa a ser mais profissionalizada. O Conselho de Administração é alargado.
O pai de Miles e um primo, que não está bem de saúde, saem da administração. O jovem Anthony passa a ser administrador em Agosto de 1965.
A sua vida empresarial fica mais preenchida pelo facto da empresa familiar: a H. P. Miles ter uma participação na Madeira Wine Company. Por isso, passa a fazer parte do Conselho de Administração desta empresa. Encontra pessoas que o marcam muito pelos seus conhecimentos e maneira de ser.

A revolução
Os anos passam. Dá-se a revolução do 25 de Abril de 1974. A democracia nasce em Portugal. Os primeiros anos são de grandes convulsões. A Madeira Wine foi uma das empresas a sofrer crises internas. Os trabalhadores contestam contra a administração.
Mas a vida continua. Os dois sócios antigos e maioritários, Blandy e Leacock, dão lugar aos jovens. É criada uma comissão executiva para onde entram William Leacock e Richard Blandy, que acaba de chegar à Madeira.
Anthony Miles, que lá está há mais tempo, é convidado a presidir. Aceita e fica durante cinco/seis anos. Até à altura em que a família Blandy compra a parte do Leacock.
Guarda gratas recordações porque lhe permite aprofundar o negócio dos vinhos e estabelecer muitos contactos locais e internacionais.

Nacionalizações
Mas os ventos da revolução também chegam à ECM. A nacionalização atinge a quota da família Araújo, que detinha a Águas do Porto Santo.
Por sorte, a quota da H.P.Miles escapa. Por ser considerado capital estrangeiro.
O Governo de Vasco Gonçalves nacionaliza tudo, ou quase. Ao mesmo tempo, pretende criar uma imagem no estrangeiro de credibilidade.
O novo figurino traz momentos difíceis. Mas há uma forte união e protestos contra a nacionalização. Rebenta uma bomba debaixo de um camião da ECM e, de pronto, os trabalhadores organizam-se e fazem vigilância permanente.
A gestão não é fácil. Há grande indefinição. A quota da Águas do Porto Santo passa a ser tutelada pelo Instituto de Participações do Estado. Os antigos accionistas continuam a fazer parte do conselho de administração.

Papel relevante
A partir dessa data Anthony Miles passa a desempenhar um papel mais relevante dentro da empresa. É o legítimo representante de uma quota não nacionalizada. Além disso, é cidadão britânico, uma particularidade que contribui para a não existência de políticas no seio da empresa. Por outro lado, Miles não está conotado com nenhum partido.
A situação de indefinição dura até o princípio dos anos 80, década em que o Governo Regional da Madeira regista em seu nome a quota que está nas mãos do IPE.

Primeiro nomeia um delegado do governo até registá-la em seu nome e, posteriormente, nomeia um administrador para o Conselho de Administração da ECM.
A partir dessa altura a situação da empresa clarifica-se. A função de Anthony Miles é coordenar o funcionamento.

Na Madeira Wine o capital social da empresa é alterado. A H.P.Miles vende a pequena participação. É uma oportunidade para reinvestir as mais-valias na ECM, a juntar à compra da participação da família Leacock. A família Miles concentra os seus recursos financeiros na ECM.
Anthony Miles assume a presidência do Conselho de Administração até surgir uma alteração no capital da empresa, com a compra da quota do Governo Regional, e com a entrada do Grupo Pestana para a H.P.Miles. Passa a ser vice-presidente e é feito um reajustamento de capital na empresa.
Em 2003 completa 65 anos, e, nessa altura, pensa dar a mesma oportunidade que lhe deram e abrir as portas aos mais novos, tal como fizeram os seus antecessores.
Um dos seus lemas foi respeitar sempre as pessoas e os valores humanos e agir com ética, civismo e correcção com os seus colaboradores e todos os outros intervenientes no negócio.
Orgulha-se de ter conseguido grandes amizades dentro da empresa, onde procurou sempre valorizar o trabalho de cada pessoa.
Curiosamente, diz que é o resultado do curso de Antropologia que, frequentou. Explica que na antropologia, um dos cunhos é conhecer os costumes das pessoas, os seus hábitos e como se organizam nas suas leis naturais de funcionamento.
Agora espera concretizar alguns projectos. Um é o da nova fábrica dos Açores. Outro é o desafio de gestão na empresa de Cabo Verde, que a ECM tem 70% do capital.
Anthony Miles é presidente da direcção da Associação Comercial e Industrial do Funchal/Câmara de Comércio e Indústria da Madeira. Cumpre o segundo ano do segundo mandato de três anos. Por isso, dedica parte do seu tempo à associação centenária, para cujo projecto não estava muito inclinado. Contudo, seguiu a máxima dos jesuítas de contribuir sempre com alguma coisa. Lá aceita e está a desenvolver uma experiência diferente que diz ser enriquecedora.
No domínio dos “hobbies” gosta de navegar no seu barco e pescar, passear na serra e caçar fora da Madeira e ler livros. Lê também a imprensa como o Jornal da Madeira, o Diário de Notícias, o Finantial Times, o The Economist e o Sunday Telegraph. 

2002-04-12

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